O filme da Netflix que dividiu a crítica, mas ganhou o coração do público e duas indicação ao Oscar

Nine

Transitando entre 1997 e 2011, sem rigidez cronológica, “Era uma Vez um Sonho” consegue manter o equilíbrio e a precisão, mesmo que a caricatura e o exagero constantemente o sondem. O drama se mantém como tal, um drama, e não se transforma em uma tragédia, e a grande sacada de Ron Howard é fazer com que ambos estejam em comunicação constante, quase se tocando. O filme conta basicamente a história de um estranho no ninho, desconfortável em sua própria pele, alguém que ama sua família, mas que chega à conclusão de que é impossível entendê-los, muito menos endossar suas atitudes ou desejar ser como eles. Seu grande conflito é almejar uma vida melhor de todo o coração, mas encontrar-se constantemente preso em situações que escapam ao seu controle, que ele poderia muito bem ignorar, mas que acabam por amarrá-lo num laço de sangue demasiado apertado.

Esse indivíduo “gauche” é J.D. Vance, interpretado por Owen Asztalos na primeira fase. J.D. é um menino adorável, esperto, mas acima de tudo possui um senso de justiça e honra que cultivou apesar do ambiente em que foi criado. Em sequências posteriores, J.D. é retratado como um estudante de Direito de Yale, uma das universidades mais prestigiadas dos Estados Unidos. Seu novo intérprete, o excelente Gabriel Basso, conserva a simpatia inicialmente despertada por Asztalos, ressaltando a autenticidade de J.D., um homem comum, trabalhador, que continua valorizando a dignidade e princípios como o ar que respira – qualidades que certamente chamaram a atenção de Usha, a colega hindu-americana com quem mantém um relacionamento sólido, interpretada de maneira menos sublime, mas cativante, por Freida Pinto.

Mais esforçado do que propriamente talentoso, J.D. consegue se livrar de situações complicadas de maior ou menor gravidade. Sente que poderia ir mais longe, apesar de sua formação educacional básica cheia de lacunas, sua formação cultural limitada, e sua arraigada rusticidade de “redneck”, que nunca lhe permitiu prestar atenção a detalhes aparentemente supérfluos, mas que podem ser bastante úteis, como aprender a ordem correta dos talheres dispostos à mesa em um jantar importante ou saber que para harmonizar determinado prato, deve-se escolher vinho branco e não tinto. Mesmo com todas essas desvantagens, J.D. ainda tinha alguma chance de mudar a situação, mas a balança fica irreversivelmente desequilibrada por culpa de sua mãe, uma ex-enfermeira que nunca mais conseguiu se estabilizar no mercado de trabalho devido ao vício em heroína.

Amy Adams divide com Basso o protagonismo da história. Sua Beverly, com altos e baixos provocados pelo vício, torna-se insuportável para aqueles próximos a ela, mas para a própria Beverly, esses momentos são comuns — e até mesmo divertidos. Ela sabe que é um fardo para a família, especialmente para J.D., mas seu estado lamentável não lhe permite levar a sério um tratamento. Tentando resolver o problema, ela aumenta a dose de heroína, esperando por uma solução definitiva — a pior possível. Não faz muito tempo, Bev sobreviveu a uma overdose, e embora acredite que sua vida não importa para ninguém, que não merece a pena de ninguém, seus parentes tornam seu resgate a grande missão de suas vidas. Esses brutos de uma pequena cidade montanhosa no norte do Kentucky também sabem amar.

Howard parte do argumento simplista, entre determinista e preguiçoso, de que estamos condenados a reproduzir os modelos de comportamento que observamos na infância. Há uma verdade nisso — e até ciência, considerando o conceito de projeção, cunhado pela psicanálise freudiana. Mas não é uma situação da qual não se possa se libertar, com uma dose (ou uma sobrecarga) de auto sacrifício. A prova disso está entre eles mesmos. Mamaw, a avó de J.D., é uma sobrevivente. Glenn Close, sempre charmosa e involuntariamente alçada ao status de símbolo sexual com o lançamento de “Atração Fatal” (1988), demonstra mais uma faceta de seu talento ao encarnar sua personagem. Com uma atuação tão intensa que se aproxima do mediúnico, dada a semelhança com a verdadeira Mamaw, Close, irreconhecível e parecendo pelo menos vinte anos mais velha graças ao primoroso trabalho de envelhecimento feito por Eryn Krueger Mekash, responde à altura quando o diretor lhe pede para retratar a dor ancestral de Mamaw. Em uma sequência de flashback, revela-se um passado de abusos que, querendo ou não, contribuiu para a desventura de Bev. As famílias infelizes são infelizes à sua maneira.

Uma reviravolta no meio do filme revela o quão turbulenta é a convivência entre esses personagens. É difícil acreditar que algo bom possa brotar ali, e que além de ressentimento e um ódio que fervilha sem nunca explodir, não haja nada que os una. No entanto, a maneira pela qual Howard e seu elenco conseguem retratar essa toca de mágoas mal curadas como uma verdadeira família agrada ao público. Isso é mérito de uma direção sensata, quase cartesiana, que resulta em atuações notáveis. Apesar de cada um ter a liberdade de viver a vida como quiser, os Vance permanecem juntos, muitas vezes conjugando destino e ruína, tal qual o retrato feito por Fellini em trabalhos como “Os Boas-Vidas” (1953) e “Amarcord” (1973). Passagens marcantes de “Era uma Vez um Sonho” conduzem ao raciocínio irrefutável de que essa turba rude, ignorante, desgraçada, pode não ter muito, mas eles têm uns aos outros. Em muitos momentos da vida, isso faz toda a diferença.

Filme: Era uma Vez um Sonho
Direção: Ron Howard
Ano: 2020
Gênero: Drama
Nota: 10

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