Porque é que o Hamas mirou Nir Oz? Não é surpresa alguma se olharmos para o mapa.
Há toda uma linha de kibutz que se estende ao leste da fronteira de Gaza. Muitos deles estão a pouco mais de uma milha (1,6 km) de distância. Os seus campos e instalações não residenciais praticamente tocam a fronteira de Israel, fortemente fortificada e monitorada por computadores. São os assentamentos povoados mais próximos de Gaza.
Esta proximidade com a fronteira não é acidental. Esses kibutz foram criados pouco depois da fundação de Israel, para funcionarem precisamente como uma primeira linha de defesa contra os ataques palestinos a partir de Gaza. Pode-se dizer que foram colocados lá justamente para servirem como escudos humanos para o sionismo.
Nir Oz no círculo. A diferença na paisagem é óbvia: de um lado da fronteira, terras aráveis e fazendas, do outro lado, edifícios aglomerados.
Estes kibutz têm a sua origem nos chamados assentamentos Nahal. “Nahal” é uma abreviação de Noar Halutzi Lohem, “Juventude Pioneira de Combate”. Estas unidades foram criadas em 1951 com o apoio de David Ben-Gurion, emergindo como uma solução para os vários problemas que Israel tinha acumulado depois de ter conquistado a independência e de ter vencido a chamada Guerra de Independência. O movimento sionista tinha conseguido limpar etnicamente e incorporar grandes extensões de território palestino no novo Estado de Israel, de maioria judaica. Tinha saído vitorioso, mas os seus recursos eram insuficientes, tanto a nível militar como econômico. Estava lutando para proteger as suas fronteiras e tinha de trabalhar arduamente para sustentar a sua própria população, ao mesmo tempo que integrava novas ondas de imigração sionista. O que muitas pessoas não sabem é que, antes da fundação de Israel, a maior parte dos alimentos que sustentavam os colonos sionistas era produzida pela população nativa local: os árabes palestinos. Depois de muitos deles terem sido etnicamente deslocados por Israel, a produção agrícola entrou em colapso e o novo governo foi obrigado a instituir um regime de austeridade para lidar com a crise.
Segurança, alimentação, integração: é aqui que entram em ação as brigadas Nahal. Recorrendo à juventude dos partidos políticos de esquerda de Israel, o Nahal transformou o que normalmente seria o serviço militar obrigatório em um movimento de pioneiros colonos armados. Estas unidades foram enviadas para proteger zonas fronteiriças consideradas estratégicas, e para ali construírem postos militares avançados. Ao fim de alguns anos, estas bases das Forças de Auto-Defesa de Israel seriam transformadas em kibutz agrícolas “civis”: assentamentos permanentes onde os soldados se tornavam fazendeiros de fronteira armados. Ali produziriam alimentos para Israel, casariam, teriam filhos, constituíram famílias, estabeleceriam comunidades, tudo isso enquanto serviam de zonas-tampão militarizadas supervisionadas por soldados-pioneiros.
Os kibutz eram aquilo a que hoje chamaríamos de soluções verticalmente integradas: segurança, assentamento, apoio, sociedade. Eram o projeto sionista de colonização destilado na sua quintessência. Ben-Gurion estava genuinamente satisfeito com o êxito alcançado.
Foi assim que Nir Oz foi criado. A comunidade foi fundada em 1955 por membros do Hashomer Hatzair, uma organização juvenil sionista socialista que teve origem na Áustria-Hungria, onde hoje é a Ucrânia. Pelo que pude pesquisar, os fundadores eram uma mescla de pessoas: alguns nasceram na Palestina e eram filhos de colonos, mas a maioria veio do Leste Europeu. Em 1957, Nir Oz tornou-se um kibutz e foi transformado numa comunidade agrícola funcional pelas mesmas pessoas que haviam estabelecido uma base militar.
O fato de se situar junto à fronteira de Gaza não tem nada a ver com o fato de ser uma boa terra para uma fazenda. Nir Oz fica no meio de um deserto onde há muito pouca água. A sua localização tem tudo a ver com segurança. Mais especificamente, tem a ver com a proteção de Israel nas vésperas de uma campanha de limpeza étnica pelas forças sionistas. Cerca de 200 mil palestinos haviam sido expulsos das suas terras e encarcerados em Gaza, uma pequena faixa de terra costeira. Estavam furiosos, vivendo em barracas construídas por eles próprios, de algumas das quais podiam ver as aldeias ancestrais de onde tinham sido obrigados a fugir para salvar as suas vidas. E bem à frente deles havia uma grande fronteira aberta na forma de um deserto. Nir Oz foi colocado ali para manter Gaza encapsulada, para proteger Israel de uma massa de população despossuída.
Nir Oz não foi o único kibutz criado como escudo humano. Todas os assentamentos de colonos perto da fronteira de Gaza, no deserto de Negev, começaram como um posto militar avançado do Nahal. E não foi só no Negev: foram criados kibutz Nahal também em outras zonas fronteiriças estratégicas, como a Cisjordânia e o Líbano.
Alguns destes assentamentos foram criados há mais de setenta anos. Mas o seu legado como escudos humanos continua vivo décadas após a sua criação. No dia 7 de outubro, os kibutz da fronteira de Gaza foram os primeiros a serem atacados porque era esperado que fossem os primeiros a serem atacados. Eles foram projetados para esse fim.
Há outro aspecto interessante nesta história dos kibutz militarizados. Alguns dos soldados-pioneiros que fundaram o Kibutz Nahal original na fronteira de Gaza ainda estão vivos e residem nas próprias colônias que ajudaram a construir. No dia 7 de outubro, alguns deles foram vítimas dos combatentes do Hamas. Três dos primeiros colonos de Nir Oz foram sequestrados e levados para Gaza: um foi libertado, outro continua detido em Gaza e o terceiro morreu em cativeiro há alguns dias.
Se fosse um roteiro de filme de faroeste, o enredo seria basicamente um clichê: jovens soldados enviados para erguer um posto colonial e proteger terras roubadas na fronteira há setenta anos colhem agora os frutos. Aposentados, gozam de uma vida confortável. Nunca pensaram que teriam de pagar o preço. Mas o destino os alcança. E agora não são só eles que sofrem, mas também os seus filhos e netos. A vingança é um prato que se serve frio e tudo mais. Pode ser um clichê narrativo, mas aqui ele é real e com consequências mortais para várias gerações.
Mas este não é o tipo de enredo que as pessoas imaginam quando pensam nos kibutz. O seu papel na limpeza étnica dos palestinos em Israel foi apagado, deixando para trás apenas civis judeus inocentes.
O passado coloca o futuro em uma camisa de força.
(*) Yasha Levine é um jornalista russo-americano. Ex-editor do jornal satírico The Exile, é autor de “Surveillance Valley: The Secret Military History of the Internet”. Escreveu para veículos como The Wired, The Nation, Slate, TIME, The New York Observer.
(*) Tradução para português de Raul Chiliani.