Considerando essa conjuntura interna, e um cenário internacional marcado pela ascensão do nazifascismo e a política da IC de frente popular, alguns setores do movimento tenentista cada vez mais descontentes com o varguismo e diversos intelectuais democratas estimulam a criação da Aliança Nacional Libertadora (ANL), no final de 1934. Embora, de início, dentro do próprio PCB houvesse resistência à ANL e um medo de que o partido se dissolvesse na frente, ao longo de 1935, o PCB abraça a construção da ANL como central na sua política com vistas à edificação de uma frente nacional antifascista, anti-imperialista e anti-feudal.
O estatuto da ANL foi aprovado em 12 de março de 1935 e dizia que a frente era “uma associação constituída de aderentes individuais e coletivos, com o fim de defender a liberdade e a Emancipação Nacional e Social do Brasil”. O lançamento oficial da ANL aconteceu num grande comício realizado no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, e Prestes, sob grande aclamação, foi eleito presidente de honra da ANL (VIANNA, 2007, p. 160).
Apenas dois meses após a fundação, a ANL já tinha 1.600 organizações de base pelo Brasil, funcionava em 17 estados e mobilizava milhares de pessoas. No lado oposto, a Ação Integralista Brasileira dirigida por Plínio Salgado (1895-1975), também estava fortemente organizada, mobilizando outras milhares de pessoas, gozando de simpatias e apoios em alguns setores da classe dominante, camadas médias, Forças Armadas e classes populares.
É fundamental para os objetivos da nossa reflexão analisar o programa político da ANL e seu papel na formação da estratégia democrático-nacional. No “Programa do Governo Popular Nacional Revolucionário” de 1935 da ANL, é dito, antes de tudo, que a ANL não é uma simples máscara do PCB, mas uma frente única nacional contra o imperialismo estrangeiro e o fascismo. Em seguida, o documento afirma que é necessário um governo baseado no povo em armas com a exclusão, somente, dos “agentes imperialistas e da maioria insignificante que os segue”.
Mesmo defendendo o povo em armas, a ANL deixa claro que seu objetivo não é um “governo de operários e camponeses somente”, mas um governo no qual estejam representadas “todas as camadas sociais” do país. A burguesia nacional “pelos seus elementos realmente anti-imperialistas e antifascistas” também participará do governo que é uma “frente única de todos os brasileiros”. Ao mesmo tempo, o Programa diz que não irá liquidar a propriedade privada dos meios de produção e nem tomará sob seu controle as fábricas e empresas nacionais. O Programa defende que o Governo Nacional Revolucionário, dando início ao desenvolvimento livre das forças produtivas, expropriará apenas os pontos estratégicos da economia nas mãos do imperialismo.
Em seguida, o Programa apresenta uma série de reivindicações de interesse dos trabalhadores (como jornada de trabalho de oito horas, férias anuais remuneradas, licença maternidade, seguro social para os sem trabalho, salário igual para trabalho igual visando às mulheres trabalhadoras, etc.) e propostas para atrair a pequena-burguesia, como diminuir o imposto sobre o pequeno comércio, reduzir fretes, impostos sobre bens de amplo consumo (da chamada indústria leve, tradicionalmente, no período, de capital de menor porte).
No campo, o documento garante que só serão expropriados os proprietários rurais feudais, aliados diretos do imperialismo na compreensão dos dirigentes da ANL e PCB, e promete acabar com toda “submissão medieval ao grande proprietário, assim como com todas as contribuições feudais ao senhor”, mas os proprietários capitalistas de terras não vão ser expropriados, embora tenham que cumprir a legislação social no campo e a posse da terra será garantida a todos que nela queiram trabalhar[11].
Em 5 de julho de 1935, Prestes lança o manifesto Todo o poder à Aliança Nacional Libertadora. Nesse documento, os elementos básicos do Programa são repostos, quando Prestes, por exemplo, classifica o nosso país como “semicolonial e semifeudal”. O fundamental é que Prestes liga o programa da ANL a toda uma longa tradição de luta e resistência, desde o tenentismo e as diversas lutas das primeiras décadas do século XX, até a própria resistência da juventude no levante paulista de 1932 – o que, diga-se, é bastante questionável e problemático.
Cabe destacar também que Prestes avança numa compreensão nacional-popular da história brasileira, dando concretude maior ao conceito de povo brasileiro, quando diz:
“Com a Aliança estarão todos os homens de cor do Brasil, os herdeiros das tradições gloriosas dos Palmares, porque só com ampla democracia de um governo realmente popular será capaz de acabar para sempre com todos os privilégios de raça, de cor ou de nacionalidade e dar aos pretos, no Brasil, a imensa perspectiva de liberdade e igualdade, livres de quaisquer preconceitos reacionários, pela qual lutam com denodo há mais de três séculos” (PRESTES, 2012 [1935], p. 138)
Conclui o líder da ANL com essas palavras, fazendo o chamamento à revolução e a derrubada do governo Vargas:
“Todos nós, que estais unidos pelo sofrimento e pela humilhação, em todo o Brasil! Organizai nosso ódio contra os dominadores, transformadores na força irresistível e invencível da Revolução Brasileira! Vós que nada tendes a perder e a riqueza imensa de todo o Brasil a ganhar! Arrancai o Brasil das garras do imperialismo e de seus lacaios! Todos à luta pela libertação nacional do Brasil!
Abaixo o fascismo! Abaixo o governo odioso de Vargas!
Por um Governo Popular Nacional Revolucionário!
Todo o poder à Aliança Nacional Libertadora!” (Idem, p. 139)[12].
Note que, do ponto de vista de compreensão do Brasil do PCB e aliados, assim como no começo dos anos 20, o Brasil é entendido como: a) um país semifeudal e semicolonial com um lugar subordinado na cadeia imperialista global; b) o latifúndio, chamado de feudal ou semifeudal, era o setor mais importante da classe dominante interna e o principal aliado do imperialismo; c) imperialismo e seus aliados antinacionais, na atual etapa da revolução, constituem os principais inimigos, assumindo a questão nacional a centralidade da estratégia revolucionária dos comunistas; d) a burguesia industrial, embora nunca chamada a ser a força dirigente da revolução nacional, tinha um papel importante e deveria se aliar com os trabalhadores do campo e da cidade; e) a forma de chegada ao poder, naquele momento, deveria ser pelas armas, dada a tendência a compreender o varguismo como fascista e o Brasil como ausente de um regime democrático-burguês.
Esses elementos são importantes de serem destacados porque terão uma marca indelével na cultura política do PCB e da esquerda brasileira durante os 30 anos seguintes. No final de 1935, o PCB e Prestes avaliavam que o Brasil vivia uma situação pré-revolucionária e que vastos setores das Forças Armadas iriam aderir a um levante armado antifascista. A tentativa de tomada do poder não foi decidida pela Internacional Comunista em Moscou, mas, fundamentalmente, foi uma decisão do PCB enquanto força dirigente da ANL.
O levante revolucionário antifascista de 1935, chamado pela direita de “Intentona Comunista”, começou na capital do Rio Grande do Norte, em 23 de novembro de 1935, com o levante do 21° batalhão, que tomou o batalhão de polícia e a cidade de Natal, depois de quase um dia inteiro de combates. Foi formado o Comitê Popular Revolucionário de Natal e um governo provisório. Em 24 de novembro, começa o levante em Recife. Em Recife não houve o mesmo êxito temporário de Natal, estando os revolucionários em situação muito mais difícil.
Na madrugada do dia 27, começa o levante no Rio de Janeiro, com intenção de ajudar os revolucionários no Nordeste. Prestes liderou a tentativa de levante do 3° RI e a Escola de Aviação no Rio de Janeiro. As tropas do general Dutra conseguiram rapidamente derrotar os aliancistas. Com a derrota no Rio, as dificuldades em Recife, o Levante de 1935 estava derrotado. Em seguida, o Governo Vargas efetuou uma série de prisões em massa na casa dos milhares e Prestes, depois de uma perseguição de 40 dias, é preso junto com sua companheira, a militante comunista Olga Benário (1908-1942).
Após a repressão brutal aos comunistas, o governo Vargas busca acabar com a política de massas no Brasil. Reprime também os integralistas e outros partidos (como a Frente Negra Brasileira), institui um firme controle estatal sobre os sindicatos, persegue todos os partidos políticos, busca matar a diversidade de aparelhos de hegemonia da “sociedade civil” (preservando, é claro, a liberdade de atuação dos aparelhos da burguesia). A utopia varguista com o Estado Novo era criar um pacto de classe onde, supostamente, todos ganhavam, e para isso a política e o conflito de classes tinham que ser anulados.
Em paralelo ao fechamento do regime varguista, prossegue o crescimento das cidades e dos operários no conjunto da população brasileira e dos setores industriais. No final de 1945, quando Vargas é derrubado por um golpe militar expressando contradições internas do projeto no governo e no clima do fortalecimento das forças democráticas no contexto de resistência antifascista mundial, o Brasil era um país mais urbano-industrial, com maior complexidade na sua estrutura de classes, ampliação das camadas médias e crescimento quantitativo do proletariado.
Com a derrubada do governo Vargas, começa um breve período de democracia burguesa no Brasil e o PCB aparece como um grande partido de massas. Mesmo com toda repressão, a memória das ações de massa da BOC e especialmente da ANL não foram apagadas. Aliado a isso, o próprio desenvolvimento capitalista dependente aumentou a base de massas potencial para a mensagem dos comunistas.
Na eleição geral de 2 de dezembro de 1945, o PCB, pela primeira vez na história, apresenta-se para um processo eleitoral com sua cara própria, sem ser escudado em alguma frente mais ampla. O candidato à presidência do PCB, Yedo Fiúza, teve quase 600 mil votos (10% dos votos), foram eleitos 14 deputados federais e Luís Carlos Prestes se tornou o senador mais votado da história do país (naquele momento histórico), com 160 mil votos. O PCB ainda conseguiu filiar 2% do eleitorado brasileiro.
Esse período de legalidade para os comunistas durou pouco. Em 7 de maio de 1947, depois do PCB tocar uma forte batalha judicial e popular em defesa da sua legalidade, o partido é posto na ilegalidade, seus militantes tem seus cargos cassados e é desatada mais uma onda de repressão aos comunistas. A despeito de toda essa repressão, na entrada dos anos 50, o PCB, como maior expressão organizativa da classe trabalhadora no Brasil, já tinha anos de acúmulo político, passado por diversas formas de atuação de massa, a experiência de tentativa de tomar o poder e de tornar-se um partido de massas de dimensão nacional com presença em praticamente todos os centros urbanos do país, vastas áreas rurais e formando quadros políticos nos mais diversos setores da sociedade.
O IV Congresso do PCB, realizado em 1954, marca a tentativa do partido de sintetizar toda sua experiência histórica e expor, pela primeira vez, uma robusta análise com pretensões totalizadoras do Brasil – em suma, o PCB, forma sua imagem do Brasil e os fundamentos teóricos precisos da estratégia democrático-nacional.
A análise desse momento fundamental na afirmação da estratégia democrático-nacional e de alguns dos seus principais intelectuais formadores, assim como a atuação político-prática da classe trabalhadora, será o objeto de atenção da próxima parte deste ensaio.
Notas:
[1] “As 21 condições têm, entre outras funções, a de servir como instrumento seletivo para impedir que a IC seja invadida por lideranças de caráter reformista. Assim, as restrições impostas pelas 21 condições são significativas da intenção centralizadora da IC […] As 21 condições representam mais do que aparentam, pois constituem um programa que transformava os partidos socialistas de tendências múltiplas, contraditórias, em órgãos revolucionários, monolíticos, unificados, prontos para conduzir as massas para a tomada de poder” (CARONE, 2003) – artigo disponível em: <https://pcb.org.br/fdr/index.php?option=com_content&view=article&id=195:a-internacional-comunista-e-as-21-condicoes-por-edgard-carone&catid=2:artigos>
[2] Para aprofundar o debate sobre modernidade, colonialismo e o conceito de raça, ver MANOEL, Jones. A luta de classes pela memória: raça, classe e Revolução Africana In Revolução Africana: uma antologia do pensamento marxista. Org. Manoel, Jones; Landi, Gabriel. São Paulo, Autonomia Literária, 2019.
[3] Nacional-popular, segundo a compreensão de Antônio Gramsci a partir do exemplo da Itália, é: “Na Itália, o termo “nacional” tem um significado muito restrito ideologicamente; de qualquer modo, não coincide com “popular”, já que na Itália os intelectuais estão distantes do povo, isto é, da ‘nação’, ligando-se, ao contrário, a uma tradição de casta, que jamais foi rompida por um forte movimento político popular ou nacional que atuasse de baixo para cima (…). Os intelectuais não surgem do povo, ainda quando acidentalmente alguns deles é de origem popular, não se sentem ligados ao povo (a não ser de modo retórico), não conhecem nem sentem suas necessidades, aspirações e sentimentos difusos; ao contrário, aparecem diante do povo como algo separado, suspenso no ar, ou seja, como uma casta e não como uma articulação, com funções orgânicas, do próprio povo” (GRAMSCI apud COUTINHO, 2011, p. 54).
[4] Sobre o colonialismo cultural antes da transição ao capitalismo dependente, diz Sodré: “a ideologia formulada e mantida pelas entidades que impulsionam o colonialismo político encontra naturalmente extraordinária receptividade entre os componentes da classe dominante nas colônias. No caso brasileiro, que é o que nos interessa, tal classe esposa ardentemente aquela ideologia, que lhe convém de forma integral, que lhe cabe como a túnica que devidamente recortada. E nem poderia acontecer de maneira diversa, uma vez que a classe dominante na colônia, e depois no império, representa, como que por procuração, aquela que, no continente europeu, criara e desenvolvera o colonialismo. Aceita todas as suas formulações e defende, quando é necessário, ponto por ponto, todo um corpo de conceitos que, no fim de contas, define irremissível condenação ao próprio país” (SODRÉ, 1962, p. 151).
[5] Para termos uma ideia mais precisa das dificuldades de pensar o Brasil pela classe trabalhadora, cabe ler essa citação onde Marly Vianna estuda o conteúdo das publicações da Revista Movimento Comunista (publicada de janeiro de 1922 a junho de 1923): “A recém-nascida imprensa comunista tratava muito pouco dos assuntos políticos nacionais e nos raros artigos com pretensões teóricas encontram-se ainda fortes traços anarquistas […] temos assim que, dos 123 artigos nos 14 números do jornal que analisamos (12 fascículos), 105 trataram de assuntos do movimento comunista internacional (85, 3%) e apenas 17 (13,8%) trataram de problemas brasileiros. E deve-se levar em conta que alguns dos artigos que tratavam do Brasil estavam principalmente referidos à Internacional [comunista]” (VIANNA, 2012, p. 173)
[6] “A ideia de uma dependência absoluta dos partidos comunistas (PC) latino-americanos a respeito da Internacional Comunista (IC) foi sustentada por três fontes muito distintas: a) o imperialismo e as classes dominantes em geral, b) o movimento trotskista e c) alguns PCs. Que as forças compreendidas no primeiro utilizem esta tese é mais do que compreensível: se trata de apresentar aos PCs e grupos afins como organizações afastadas da realidade nacional, e ao próprio marxismo como “ideologia estrangeira”. Igualmente se entendem as razões dos trotskistas; é uma forma de atribuir todas as limitações e eventuais erros da esquerda realmente existente (a outra, é por definição imaculada) a Stalin e à IC. ” (CUEVA, 2015, p. 177).
[7] “O fato de ser membro da IC não determinou fatalmente o destino dos PCs nos parece ser uma evidência. Pensando na trajetória de três partidos asiáticos no poder hoje, chineses, vietnamitas e coreanos, percebe-se a imensa distância que os separa de seus pares latino-americanos, todos membros, no entanto, da IC. Os asiáticos estavam obviamente mais próximos dessa organização do que os latino-americanos, mas não era um obstáculo para eles, por um lado, nacionalizar profundamente seu marxismo – para o bem ou para o mal – e, por outro, seguir caminhos muito diferentes. A experiência de Mao, especialmente desde 1935, também prova a seguinte hipótese: não é que alguns PCs tenham sido – e algumas vezes permaneçam – fracos porque o CI lhes impôs uma certa linha política; pelo contrário, era na medida em que eram fracos e desprovidos de raízes populares que uma linha “externa” parecia lhes ser imposta. Mao poderia divergir de Stalin porque se movia, de acordo com sua metáfora, “como o peixe na água”” (CUEVA, 2015, p. 178)
[8] “Com Bernardes, centralização – tese. Com Isidoro, tentativa de descentralização – antítese. Com a ditadura proletária, nova centralização, superior a todas outras – síntese de todas sínteses passadas. E fecha-se o décimo ciclo da história nacional” (BRANDÃO, 2006, p.141).
[9] Diz o jornal A classe Operária, jornal do PCB, ao anunciar a eleição de Minervino e Brandão: “Vitória! Vitória! Pela primeira vez na história do Brasil, após 428 anos de luta, os trabalhadores abrem uma brecha nas formidáveis muralhas do legislativo e penetram na cidadela inimiga para iniciar uma política de classe independente”.
[10] Cabe destacar que na época das fraudes eleitorais eram constantes e Minervino deve ter tido uma votação expressivamente maior, algo em torno de 3 a 4 mil votos.
[11] Roberto Sisson (1899-1976) foi um poeta, político e militar. Era um dos dirigentes da ANL e em junho de 1935, resumiu em cinco pontos o programa da ANL: “I – Suspensão definitiva do pagamento das dívidas imperialistas do Brasil (…) II – Nacionalização imediata de todas as empresas imperialistas (…); III – Proteção aos pequenos e médios proprietários e lavradores; entrega das terras dos grandes proprietários aos camponeses e trabalhadores rurais, que as cultivam (…); IV – Gozo das mais amplas liberdades populares pelo povo brasileiro, nele incluídos os estrangeiros que aqui trabalham e são explorados como nós próprios (…); V – Constituição de um governo popular, orientado somente pelos interesses do povo brasileiro (…)” (SISSON, [1935] 2019, p.125).
[12] O “Programa do Governo Popular Nacional Revolucionário” e o discurso de Prestes “Todo poder à Aliança Nacional Libertadora” estão disponíveis na antologia organizada por Michael Löwy (2012, p. 135-139).